João*, de 8 anos, não sorria para os familiares, não gostava de contato social e era agressivo com os pais. Conheça a história da mãe que teve de aprender a amar seu filho
Eliseu Barreira Junior

O filho tão desejado por Cláudia nasceu em um parto complicado. Por causa disso, ele teve de ficar internado durante dez dias antes de ir para casa com a mãe. Conforme crescia, João demonstrava um comportamento pouco comum: não sorria para os familiares, não gostava de contato social, era agressivo com os pais sem motivo, não reagia afetivamente e não falava. Para a família, tudo aquilo parecia natural, coisa de criança. Até que, ao completar 1 ano e 8 meses, ele passou a frequentar um berçário. No ambiente escolar, ficou evidente que havia algo de errado: João batia nas outras crianças, não gostava das professoras e evoluía de modo incompatível com a sua idade. Os profissionais do berçário recomendaram então que Cláudia procurasse ajuda médica.
Levado a um psicólogo, foi constatado que João apresentava traços de uma criança autista, apesar de não ter autismo. O diagnóstico: Transtorno Global do Desenvolvimento. Sob o nome, estão incluídos graves distúrbios emocionais e transtornos relacionados à saúde mental infantil. "Os problemas dessas crianças não vêm necessariamente de uma debilidade intelectual nem de uma debilidade física", afirma Maria Cristina Kupfer, professora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP) e estudiosa da psicose e autismo infantis há mais de vinte anos. "Seus problemas vêm de uma falha precoce no estabelecimento da relação com os outros."
Isso quer dizer que, para crianças como João, a construção do psiquismo voltado para o convívio social não se fez convenientemente. Nosso psiquismo (ou nossa personalidade) é construído para ser um instrumento de relação com os outros, uma espécie de porta aberta para o mundo. "A falha nesse processo é resultado das dificuldades, acidentes, entraves ou impasses ocorridos durante o processo de estruturação subjetiva da criança", diz a psicanalista Enriqueta Nin Vanoli, da equipe multidisciplinar da Associação Serpiá (Serviços Psicológicos para a Infância e Adolescência), de Curitiba (PR).
A análise do histórico de vida de João pode ajudar a entender como o problema se desenvolveu. Cláudia conta que o fato do menino não corresponder aos carinhos que recebia ainda bebê, evitar o seu olhar e não esboçar nenhum tipo de sentimento criou uma barreira entre ambos. Ela sonhara com um modelo ideal de criança a que João não correspondia. A frustração impedia uma proximidade, uma relação genuína de mãe e filho. "Era como se o João fosse uma criança qualquer. Apesar de estar ao seu lado fisicamente sempre, não conseguia me aproximar emocionalmente. Ele cresceu isolado de mim", afirma. Cláudia acredita que o problema no parto, de certa forma, criou uma ferida psicológica que marcou o garoto. "A verdade é que eu também tinha dificuldade de amar meu filho, talvez pelo meu histórico familiar. Cresci num ambiente em que as pessoas eram muito fechadas. Costumava me julgar uma pessoa carinhosa, mas dar carinho é diferente de dar amor."
O relato de Cláudia revela dois elementos que os especialistas costumam notar em casos em que o Transtorno Global de Desenvolvimento é diagnosticado. Em primeiro lugar, há uma enorme dificuldade para os pais aceitar o não-olhar dos filhos, interpretado como falta de afeto por parte da criança. Em segundo lugar, o problema sempre envolve o menor e o adulto responsável por sua criação, ou seja, ele não pode ser concebido como um fenômeno que acontece com somente uma pessoa. “É preciso tomar cuidado, porém, para não culpar os pais, porque são coisas que não costumam passar pela consciência deles”, diz Jussara Falek Brauer, professora aposentada e coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas Psicanalíticas dos Distúrbios Graves na Infância do IP-USP. “A criança pode estar respondendo a algo de errado que está na mãe e que, às vezes, nem a própria mãe sabe que tem. Só por meio de análise é possível descobrir o que está acontecendo.”